top of page
Cao Guimarães e a poética do cotidiano

O cinema de Cao Guimarães é feito de escuta, de espera e de uma atenção quase silenciosa aos detalhes da vida que passam despercebidos à maioria de nós. Em seus filmes, o cotidiano não é pano de fundo, mas o próprio protagonista, e é dessa aposta que surge uma poética delicada, feita de fragmentos, pausas, ruídos suaves e gestos mínimos. O mais recente filme deste que é um dos maiores cineastas brasileiros contemporâneos, Amizade, parece ser uma síntese de tudo o que atravessa sua obra, mas agora pela via afetiva da relação que se constrói quando se envelhece ao lado de uma alma amiga: ele traz o olhar paciente de quem se recusa a impor sentido, de quem  se abre ao acaso. Durante mais de trinta anos, Cao registrou encontros, conversas e situações com amigos artistas, numa espécie de mosaico de registros domésticos em diversos formatos, que vão de telas de computador e filmes em super-8 e 35mm a fitas cassete e antigas gravações de secretárias eletrônicas. “A amizade, como o cinema, é uma escultura no tempo’, reforça ele.  

33 - Cao Guimarães e a poética do cotidiano.jpg

Considerando que nossa atenção anda sugada por telas, notificações e exigências de produtividade, por um mundo que grita, mas que paradoxalmente nos impede de ouvir, assistir a seus filmes sempre me pareceu um convite a respeitar os acontecimentos como vão se dando e a resistir ao tempo atropelado, produtivista e consumista do capitalismo. É que existe uma certa confiança quase obstinada que tira sua força imagética justamente desse lugar: uma luz entrando pela janela, uma gota do orvalho, crianças brincando, a chegada do trem, imagens que ganham força visual e carga dramática justamente na maneira como o tempo as atravessa. O tempo, intrínseco ao cinema, como matéria pulsante do filme, é utilizado em favor do fluxo da narrativa (ou da vida?), guiado por uma montagem que se volta e se demora nos seus ritmos internos. Nesse processo, a música ocupa um lugar especial: ela não invade a imagem, mas dialoga com ela com gentileza, e dessa sinfonia do cotidiano junta-se a trilha musical aos silêncios e ruídos. O som, como a imagem, também é tratado como matéria viva. É uma escolha estética que confia na escuta do espectador e que prolonga a atmosfera da cena para além do que se vê, para o extra-campo, para a contemplação.

Ao longo de sua filmografia, de A alma do osso a Otto, de Andarilho a O homem das multidões, o diretor tem explorado o risco da forma: filmar sem roteiro fechado, filmar com os sentidos aguçados, montar sem buscar linearidade, permitindo que as imagens sejam. Sua trajetória como artista plástico e cineasta ampliou o cruzamento do cinema e das artes visuais ao longo do tempo, e arrisco dizer que Cao é hoje um dos diretores brasileiros que mais presta atenção à forma, dando-lhe primazia. Sua formação do olhar começou ainda na década de 1980, quando “aprendeu a ver o mundo, ou melhor, a perceber que existiam novas formas de ver o mundo”, disse em entrevista para o Estado de Minas.

Cao Guimarães.jpg

Seu cinema, retorno a dizer, é um convite ao olhar sem pressa para o cotidiano, filmando com o que se tem, quando se pode, sem violentar o real, sem forçar uma organização. Quer coisa mais poderosa do que isso em pleno 2025? Quando a gente se demora nas imagens, respeitando um tempo mais contido, estamos sendo resistentes a um tipo de cinema “de aceleração”, com ritmo frenético e cortes rápidos, propostas de montagem que vemos hoje dominarem as telas. E que pressa é essa que a gente tem, incapaz de lidar com a espera? Em entrevista novamente, ele afirma: “Há grande distanciamento entre o tempo cinematográfico, cada vez mais veloz, e o tempo da vida, muito mais elástico. Sentir esse tempo na sala de cinema é muito importante”. Amizade é, nesse sentido, uma carta aberta ao tempo compartilhado com os outros, não naquela urgência da resposta rápida, mas do cinema como espaço de permanência, de escuta e de encontro.

A Embaúba play, plataforma especializada em cinema brasileiro contemporâneo, está disponibilizando, gratuitamente, a retrospectiva “Foco Cao Guimarães”. A seleção explora dimensões de seu cinema onde a literatura, a espera, o tempo e o acaso se entrelaçam em narrativas híbridas e experimentais. Os novos títulos disponíveis são: “Ex-isto” (2010), “Elvira Lorelay Alma de Dragón” (2012), “Otto” (2012), “O homem das multidões" (2013) e “Espera” (2018), formando um percurso que atravessa diferentes formatos e temas ao longo de mais de uma década. Os outros cinco títulos que integram o Foco são “O Fim do Sem Fim” (2001), “Rua de Mão Dupla” (2002), “A Alma do Osso” (2004), “Andarilho” (2006) e “Acidente” (2006). Cabe a nós aproveitarmos essa chance de conhecer melhor sua filmografia, de olhar com atenção, principalmente aqueles que, como eu, não moram nas metrópoles onde seu novo filme, Amizade, pode ser assistido (ex. Belo Horizonte, Brasília, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza).

Texto publicado em 17 de março de 2025.

Das Kino Brasil 
  • Instagram
bottom of page